sexta-feira, 30 de novembro de 2012

VISITA AO RUNTU

Vista aérea de Runtu
O Runtu (ou Rundu) é uma cidadezinha da Namíbia, na fronteira com Angola. Situada na margem sul do Rio Cubango (internacionalmente conhecido por Okavango). A Namíbia foi primeiro administrada e depois ocupada pela União Sul-Africana (actual República da África do Sul). Tornou-se independente em 1990.
Como é sabido, os sul-africanos foram, de forma mais ou menos encapotada, nossos aliados na guerra em Angola. Eram conhecidos pelos "primos". Da ajuda militar que nos proporcionavam fazia parte o apoio aéreo. Principalmente com helicópteros AL III. Estes helicópteros eram usados para o transporte das nossas tropas durante as operações militares. Esta ajuda era sempre enquadrada por um heli-canhão nosso.
No fim de cada operação os “primos” regressavam à África do Sul (Namíbia) sendo escoltados pelo heli-canhão até ao ponto de saída de Angola, o Runtu.
Heli dos "primos"
Esta introdução explica as nossas visitas ocasionais à Namíbia.
Era a oportunidade para o piloto e o mecânico irem até ao outro lado da fronteira e ganhar ajudas-de-custo "internacionais". Um complemento ao pequeno ordenado que recebíamos. Principalmente porque no pouco tempo que lá se passava (um dia ou dois) estávamos alojados no campo militar do Runtu e não gastávamos nada. Para se gastar alguma coisa tinha de se ir ao Runtu (povoação). Aí podiam fazer-se algumas compras como, por exemplo, os cachimbos, os "sacos" de estopa que serviam para transportar água (mantendo-a fresca), lembranças no comércio local, etc.
Vindos do rio Cubango/Okavango
Foi num desses "raids comerciais" à povoação que...
Caminhando numa das ruas vi uma loja de "souvenirs". Uma olhada rápida para o interior prometia fazer um bom rombo no orçamento. Havia um pouco de tudo: tecidos, pinturas, máscaras, peles curtidas, trabalhos em madeira, etc. A escolha era vasta. A loja, não muito grande e um pouco sombria, tinha duas ou três filas de expositores em prateleiras que subiam um pouco acima do nível da cabeça (como num supermercado). Os diversos artigos estavam bem arrumados nas prateleiras e o chão, de cimento velho, tinha sido varrido recentemente porque os fachos de luz solar que entravam obliquamente pelas janelas mostravam, contra o fundo escuro do interior, as partículas de pó que flutuavam no ar. Ainda sinto o cheiro típico destas lojas; aquela mistura de madeira esculpida e peles secas. Era o mesmo cheiro em todas essas lojas. Mesmo nas de Angola.
Já lá dentro, demorei-me um pouco a apreciar os diversos objectos.
Ao fim de algum tempo comecei a sentir aquela sensação que se sente quando se é o alvo das atenções. Uma espécie de pressão sobre os ombros que não nos deixa concentrar no que estamos a fazer. Pelo canto do olho vi que, efectivamente, dois indivíduos tinham parado ao fundo do corredor e olhavam-me directa e ostensivamente. Pensei logo que seriam os guardas do estabelecimento a ver se eu não punha alguma lembrança nas algibeiras do fato de voo mas rapidamente me apercebi de que havia mais gente que me olhava. Toda a gente me olhava. Mesmo pelos intervalos das peças de artesanato à minha frente, havia olhos que me fitavam. É certo que eu era um estrangeiro mas... tanta curiosidade?
Loja de artesanato
Pousei na prateleira a caixa de madeira trabalhada que tinha na mão e olhei à minha volta. Afinal todos aqueles olhares não eram de curiosidade, eram olhares graves e carrancudos, quase (?) de ódio. E foi nesse momento que eu percebi a situação: todos os clientes eram pretos! Eu estava numa loja para pretos num país onde, oficialmente, pretos e brancos não se misturavam. Eu estava na loja errada e era, claramente, indesejado naquele local! Este foi o meu primeiro encontro com o “apartheid”.
Voltei a pegar na caixa de madeira que me tinha agradado e dirigi-me ao balcão, perto da porta, onde estava a caixa registadora. Sem muita conversa, paguei e dirigi-me para a porta com a caixa debaixo do braço. Na saída voltei-me para o interior da loja, levantei a mão em sinal de paz e, olhando para a minha estranha plateia, abri um sorriso amigável e franco e disse: “Sorry.” Ninguém me respondeu, nem alterou o olhar fixo e agressivo. Outras gentes...
Felizmente que o comerciante devia ter por lema: “Apartheid, apartheid, negócios à parte!” Ainda hoje tenho a caixa de madeira que lá comprei.
Em Angola esta situação, que me apanhou de surpresa, não faria sentido. Eu sempre andei por onde quis e sempre tratei todos da mesma maneira, pretos, brancos ou mestiços. Também nunca me senti hostilizado por parte da população local. Nós, Portugueses, deixámos pelo Mundo uma “marca” que nenhum outro povo soube deixar. A nossa maneira de ser, franca, amigável e sem preconceitos, sempre foi um inimitável cartão de visita. Sei do que falo porque ao longo da vida vivi e trabalhei em muitos países que foram antigas colónias de diferentes povos.
 Penso que uma boa parte da juventude actual não sabe o que foi o "Apartheid". Ainda bem!

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

CONVERSAS NA CIDADE Nº.3


Nota Introdutória
     Os “especiais” e o novo companheiro encontravam-se no “Lux Bar” a curtirem a folga da Base…
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Marrador - O Vito, o Joca e o Quim tinham satisfeito as primeiras necessidades…as que entram, não as que saem. Comidos e bebidos deparam-se em acertar com a porta do “Lux Bar”. Ainda houve um dos “especiais” que traçou com o taco do bilhar o azimute do jardim frontal…, mas as mentes andavam turvadas – causa do líquido amarelado. Bem, as moelas e os “pi-pis” tiveram que ser regados a primor pelo efeito do carrego do gindungo!...
- Vamos seguir os nossos “artistas” e ouvir a “canção da Amélia”…
VITO - Amélia…Am…Amélia…
JOCA - Estás a cantar, ou a ladrar?
VITO Zungo!...
QUIMMoio” aos dois. Tenho encontro marcado noutras paragens!...
VITO / JOCAMoio Ué”. Porta-te bem e aprende a agarrar o “taco”.
JOCA - Essa foi forte !...
VITO - Então, levou “cossa” no bilhar – mereceu duas derrotas!
JOCA - Amélia dos olhos doces… tá…tá…tá…
VITO -  … tá…tá…-tá… gaivota, amante, poeta…
VITO / JOCA -  … Rosa de café, Amélia gaiata, do bairro da lata, do Cais do Sodré… tá…tá…tá…
VITO - Passamos uma tangente à casa da Amélia?
JOCA - Yes, meu. Essa linda “Tusula”!... Depois, deitamos uma espreitadela pelo ambiente do “Estrela D´Alva”. 


Marrador - Bem, estes “especias” iam a seguir as pisadas sob a influência do instinto. Saíram do “Lux Bar” e, à sua frente deparou-se-lhes o jardim e as Bombas de gasolina. Inclinaram à esquerda, cruzaram a Avenida que seguia para a Capela, e estacam junto à casa da Amélia.
VITO É…é…é…aqui!...
JOCA Hehhh!
VITO Alguma abelha te ferrou no “munhenho”?
JOCA Topa a cena daquele mirone na pista de carros.
VITO Treme, treme com as pernas junto à “muchacha”…
JOCA É o Oliver, sargento das ágatas….
VITO O próprio… e parece que esteve de quarentena lá em casa!....
JOCA É como os cegos. Vêm com o tacto…
VITO – E apalpam com os membros inferiores?!...
JOCA Com o membrito? Malandreco!...
VITO O olhar dele está barrento. A mente está presa ao instinto!
JOCA Qual das três te deu volta à cabeça? A Eka, a Nocal ou, Cuca?
VITO – A…N…D…O…R!... Antes que venha a “calunga”. Temos “maningue” que fazer.
JOCA Passamos ao largo do “Estrela D´Alva”. Miramos a paisagem e não iremos entrar.
VITO Tens receio dos bifes de “ferro”? Bem, tem umas instalações hexagonais e recatadas!... Longínquas do reboliço!...
JOCA Pois, - há outras paragens prioritárias, por agora…
VITO – Hummm…Humm! Olha que este caminho só nos leva ao cemitério, ou à Barragem do Capelão?!... Para isso, teremos que passar pela sanzala…e dançar um “merengue” na “cubata” gigante.
JOCA  Curvamos. Há jogo no Estádio e os nossos “sorjas” vão “jogatinar”.
VITO Mas primeiro estacionamos em frente da Capela para mirarmos as “modelos”.
JOCA Queres ver a Amélia e as amigas… Ainda te prendes pela cidade do Carvalho – do Henrique de Carvalho.
VITO Tenho saudades do “Puto”, mas a que lá deixei…deixei!...
JOCA Lamúrias. Traz a “Mauser” e vamos caçar. Araras e leoas não faltam nestes lugares.
Marrador - Pé, ante pé, os nossos amigos seguiam pela Avenida da Capela. Do estacionamento das Carreiras provenientes do Luso e do Dundo, prosseguiram até ao largo dos Correios. Passaram pelos cruzamentos que davam para a Colectividade de Saurimo onde o Capelão ensaiava o seu grupo teatral, pela casa comercial de artesanato do sogro do assassinado Carvalho, pela escola de condução onde muitos companheiros tiraram a carta, Liceu e Avenida das mangueiras que finalizava numa velha Missão de religiosas, no caminho para a piscina. Estacaram no muro da Capela.
VITOAqui. Aqui junto a estes camaradas de armas.
JOCA Olha, olha o Meteo-Gonçalves que há muito tempo não lhe punha os olhos em cima.
GONÇALVES Ehhh…pessoal. Tudo nos “gungungos”?
VITO / JOCA Bruxooo.
VITO E que tal lá pelas bandas do Cazombo? Muitas “mulecas”? E a joia da coroa?
JOCA Passou-me essa!... Joia da coroa?
VITO Sim, a mascote elefante que ele e outros adoptaram no Destacamento.
JOCA Elefante? Mascote? Dorme convosco?
VITO Dorme, dorme…Meia caserna ficou no exterior…ao cacimbo! 


GONÇALVES Não é bem assim, mas quase. Para lhe darmos banho tivemos que fundir três banheiras. Para comer, assaltámos as bananeiras dos arredores. Segue-nos a cada canto e todos os dias cresce aos palmos. Ainda a vamos treinar para fazer filmes com o Tarzan!...
VITO A…a… é do sexo feminino?
GONÇALVES É a nossa menina e tem uma história macabra!
JOCA Este maralhal está aqui com a “peida” arreada no muro a fazer o quê?
GONÇALVES A calejar o “munhenho” ou, a ver a missa. Não topas as ratoeiras à entrada da Capela?
VITO Uihhh…Uihhh… Eu a pensar que estavam à espera de ver passar o Governador!...
JOCA Ou, a Amélia e as suas manas. Este jardim dos CTT, é o encanto mais visitado…
GONÇALVES Meninos, vamos à bola. Os “sorjas” vão iniciar a jogatina no pelado dos mangueirais.
VITO No campo das abelhas?
JOCA Nesse campo em que foram todos picados?
GONÇALVES Não há outro! E as abelhas foram mortas a tiro.
VITO A tiro? Então está ligada àquela história do mel recolhido com caju à mistura?
JOCA Caju…de chumbo.
GONÇALVES Vamos gritar pelos FAP. Hoje, a PSP vai perder. Temos lá os nossos vizinhos Ocart´s. Tudo sob controlo…controladores…terrestres.
VITO No campo ao lado, também haverá um jogo de futebol de salão com os “especiais”.
JOCA Isso é no cimentado. Vamos dum lado para o outro. 



VITO E…acabaremos no Clube do Cinema, no velho Chikapa.
GONÇALVESMas…cinema…hoje, não.
JOCA Porquê?
GONÇALVES O projectista passou por nós…a cambalear…
VITO Então teremos o filme a começar do fim para o início?
JOCA Como sempre…Curiosamente a sala de cinema foi construída com o soalho em plano inclinado…invertido.
VITO Sim, o soalho sobe para a tela!... Por isso, as cadeiras andam sempre a dançar para tomarem posição.
GONÇALVES Não estiveram cá na última sessão?!… O pessoal do exército partiu o “cadeirame” todo só porque o “camera man” começou o filme pelo meio. O “Asa Negra” obrigou-os a cravarem uns pregos nas cadeiras partidas e a retomarem o filme de trás para a frente. Foi um castigador!...
VITO Nem tanto. O filme de trás para a frente…já era costume!
Marrador: Nesta “lenga-lenga” caminhava-se pela Avenida dos CTT. Esta, trepava, trepava até à rotunda…lá longe.
     Abandonaram a estátua do sertanejo. O recipiente das nossas cartas, a encruzilhada no jardim, os bancos namoradeiros, o Palácio do Governador, a Capela, o Clube, O Cinema, os campos de “futebóis”, as abelhas e as mangueiras.
  Voltaram costas a tudo isso…por momentos!
     Foram simplesmente matar a sede ao “Bar dos passarinhos”, e comer uma passarinha nas proximidades do “Quioco” ou, da “Cubata”. Vamos esperar para o próximo relato para indagarmos o destino da rota incerta… A cidade seguia o seu movimento de rotação?!... Bem, vou juntar-me aos gajos para lhes escutar a conversa! Calhando, … o movimento é outro!... 
Língua Quioca   
Zungo – Cala-te
Moio – Cumprimento
Tusula – Rapariga
Calunga – Chuva
Munhenho - Cu

Anotações:
Amélia – Jovem cidadã de H. de Carvalho que veio a casar com companheiro da Força Aérea
Oliver- Nome fictício, sargento R.D.  da FAP, casado e radicado na cidade.
Mascote – Pequeno elefante adoptado no Cazombo. História a recolher do Gonçalves – Meteo
Campo das abelhas – Abelhas soltas pelo campo das mangueiras no momento de jogada.
Asa Negra – Comandante do exército com histórias peculiares

Fotografias:
Recolha do “nosso” Blogue
  

Até Breve
O Amigo




sexta-feira, 9 de novembro de 2012

XXXVII ENCONTRO - MENSAGEM DO CAP. AMARINO

     Agradeço de todo o coração o convite para o V/encontro do Outono. Lamento não poder comparecer, uma vez que a minha mulher se encontra doente há bastante tempo, o que exige a minha presença junto dela. Se DEUS quiser, as melhoras hão-de aparecer dentro em breve.
     Tenho acompanhado os vários testemunhos, relatos feitos no V/Sítio (aquele do piloto Carvalho reportava situações que presenciei e senti devido ao facto de, pelas minhas funções, ter de ir a todos os aeródromos do Leste de Angola), bem como fotografias e outras notícias, as quais me transportaram a um passado que vivi intensamente e de que tenho muitas saudades, apesar da situação peculiar em nos encontrávamos!
     Podem estar certos de que eu tinha, e continuo a ter, em grande apreço os "Especialistas" pelo seu valor intrínseco, e os do AB4 em particular pela forma "gentil" com que "sempre" receberam os meus dois filhos nas "Festas" que realizavam no Clube.
     Nunca esquecerei isso!
     Embora ausente, não deixarei de pensar no acto da invocação " Daqueles que já partiram", por isso, dirigirei as minhas preces a DEUS pelo "Seu" descanso eterno!
     Finalmente, um ABRAÇO para "Todos" com o desejo de nos vermos num próximo "Encontro".

Amarino Pereira




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

BONS E MAUS TEMPOS



BONS E MAUS TEMOS
Caros companheiros, familiares e amigos:
     Ao vermos o nosso impressionante "Álbum de Fotos", o qual nos trás ao pensamento aqueles momentos inesquecíveis do que chamávamos de “Guerra Colonial” vemos que, na grande maioria das fotos estamos felizes e divertidos.
     Pois é, fotos que tirávamos nos momentos de lazer, e se até nesses momentos não estivéssemos alegres ou divertidos fazíamos por tal, pois essa seria mais uma imagem a enviar aos nossos familiares e amigos, pois queríamos mostrar que, como dizíamos nas cartas,  estava tudo bem de saúde e de espírito.
     Umas verdades, umas mentiras inocentes, boas ou má disposição era tudo o que relatávamos nessas cartas, pois vivíamos numa ditadura onde as cartas ou os “Bate-estradas” eram espiados à lupa e não podíamos dar azo às tristezas, mal-estar, insatisfação e revolta.
     Não temos palavras, o coração aperta ao reviver naquele álbum, ver imagens dos que foram os primeiros e os últimos, os que chegaram e os que por lá ficaram, aqueles que já se foram e os que hoje são outros, porque lá foram.
     E as evacuações? E as noitadas? E a pouca ou má alimentação? E o cansaço? E? E?... E os que estavam junto à rede toda a noite? E os que estavam nos destacamentos, ainda mais na linha da frente? … Tantos EEE`s,  que nem sei em que falar.
     Quantos dias e noites passávamos em sobressalto, quando sabíamos que as nossas tripulações, nos fabulosos aviõezitos que tínhamos, entre tantas missões que lhes estavam destinadas, (missões de busca e salvamento, evacuações, protecção a colunas de militares e civis,) ainda saíam em missão de combate, municiados de armamento, que quando regressavam já nada traziam porque as descarregaram em locais pré estabelecidos, sem que esses homens soubessem o porquê de tamanha destruição.
     Apesar do cenário de guerra em que se vivia, a coragem, o espírito de sacrifício, a camaradagem, fazia destes jovens, dignos de serem recordados com mais respeito, por aqueles que ainda hoje nos querem apagar da memória colectiva futura. Fizemos por merecer o respeito das chefias militares, dos governantes, do País a quem tanto demos e nada pedimos. Talvez um dia… 
     Escrevemos estas linhas, para que ao verem os nossos álbuns, não pensarem que a guerra era lá longe, e que as alegrias e os devaneios da juventude estampados nos nossos rostos eram toda a verdade, porque essa, só cada um pode dizer o que passou, o que sentiu o que foi.
     DESTERRO, de certeza que foi para quase todos e por isso escrevemos a agradecer a todos os que têm colaborado neste Blog, com os seus depoimentos e Histórias de Guerra.
     Esperamos, que se ainda não escreveste, o faças, para que te possamos recordar e revivermos os bons e maus tempos.
Recebam um abraço
Os Editores