sexta-feira, 29 de março de 2013

GILBERTO BARATA, CONDECORADO 19 VEZES !



Um sargento condecorado 19 vezes por actos heróicos

Antigo sargento-mor da Força Aérea Portuguesa salvou 13 pessoas entre as quais um militar brasileiro de um avião em chamas. O seu mais importante feito aconteceu a 11 de Dezembro de 1960 mas o episódio está tão vivo na memória do ex-militar que o recorda como se fosse hoje.
O Núcleo de Vila Franca de Xira da Liga dos Combatentes orgulha-se de ter um sócio que é um dos militares com a patente de sargento mais condecorado em Portugal, tendo recebido distinções dos estados português e brasileiro. Ao todo são 19 condecorações por feitos heróicos ao serviço da nação. Gilberto Duarte Barata, de 71 anos de idade, que se reformou como sargento-mor da Força Aérea Portuguesa, salvou 13 pessoas entre as quais um militar brasileiro de um avião em chamas.           
O seu mais importante feito aconteceu a 11 de Dezembro de 1960 mas o episódio está tão vivo na memória do ex-militar que o recorda como se fosse hoje.
Na altura, Gilberto era cabo mecânico-electricista. Um avião que voava para o Brasil e levava os restos mortais de soldados brasileiros mortos na II Guerra Mundial aterrou no aeroporto da Portela, em Lisboa. O aparelho acabou por se incendiar e Gilberto com a ajuda de outro colega não hesitou. Entrou dentro da aeronave e conseguiu retirar as pessoas do interior. As 485 urnas de soldados do Brasil mortos na guerra e que ao fim de muitos anos regressavam ao país também foram recuperadas.


O Estado brasileiro não podia deixar de agradecer e em 1962 atribui-lhe a medalha de Oficial da Ordem de Mérito Aeronáutico, a mais alta condecoração do Brasil para galardoar feitos heróicos na Força Aérea. Depois veio uma distinção do Estado português que lhe entregou a medalha de Valor Militar por actos heróicos. Até 2012, foram 19 as distinções, o maior número nas forças armadas dos dois países atribuídas a um militar com a patente de sargento.
Gilberto Duarte Barata cumpriu duas comissões de serviço na Guerra Colonial em Moçambique de 1965 a 1973. Como mecânico-electricista passou 23 anos a voar e a acompanhar voos um pouco para todo o lado. “Cheguei a dar a volta ao mundo em 4 dias. Comecei por ir com destino a Timor e, em dia e meio, estava em Honolulu, Havai, a lanchar”, recorda. Os seus momentos mais marcantes foram os voos como segurança de Presidentes da República, como os de Costa Gomes aos Estados Unidos e de Ramalho Eanes, a Inglaterra por ocasião das comemorações dos 25 anos de reinado da rainha.
Às muitas medalhas, condecorações e diplomas recebidos, Gilberto Barata junta mais interesses que lhe enchem a casa. É coleccionador de selos postais e tem cerca de 2,5 milhões de exemplares, já para não falar das mais de mil garrafas de uísque recolhidas em vários pontos do mundo. “Posso garantir que as juntei todas sem me embebedar”, assegura o sargento-mor.

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Acidente “Brasileiro” no aeroporto de Lisboa (artigo retirado da NET) com a colaboração de Mário Costa.





















O acidente aconteceu em 11 de Dezembro de 1960 , há 52 anos, por volta das 14.10 horas...
Um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) estava a fazer-se a pista quando bateu com demasiada força na pista. O trem de aterragem do lado direito entrou pela asa do C-54 e incendiou-a.
O aparelho afocinhou e o fogo espalhou-se. Os nove tripulantes, entre eles um general, conseguiram abandonar a fuselagem por uma escotilha superior envidraçada – utilizada normalmente pelos navegadores - mas o segundo piloto caiu no meio das chamas que lavravam na asa, ficando gravemente ferido.
O aparelho era um C-54G-5-DO com o registo FAB2401. Seguiam no seu interior o Major Aviador Oscar Ferreira de Souza (piloto), Major Aviador Antônio Dias Macedo (co-piloto), Capitão Hans Werner Dietzold (navegador) Sargento Fernando Batista, Sargento João L. De Oliveira (Mecânicos), Sargento António Alves Deus (radiotelegrafista), General Cordeiro Faria e Tenente-Coronel Eduardo da Costa Neves (Passageiros).
Entre os restantes oito elementos registaram-se queimaduras nos membros superiores e inferiores e algumas equimoses causadas pelo choque. Todos conseguiram escapar com vida, ajudados por militares portugueses que se encontravam no local para acompanhar os três aviões da FAB, que nessa manhã deveriam fazer escala em Lisboa, antes de seguir para o Rio de Janeiro.
Os oficiais portugueses terminaram a espera ajudando a retirar homens e carga dos aparelhos, quando vinham prestar homenagem e honras militares aos 466 corpos de militares brasileiros caídos em Itália, durante a II Guerra Mundial, que vinham no compartimento de carga dos cargueiros.
Só a parte frontal do avião ardeu e a traseira – onde seguiam parte dos corpos – ficou intacta apesar de algumas das urnas terem ficado ligeiramente chamuscadas. Seria uma dessas urnas – a de um soldado desconhecido – que seguiria no dia seguinte para o Mosteiro dos Jerónimos onde lhe foram prestadas todas as honras militares por parte das autoridades portuguesas.
O Major Brigadeiro José R. Meira de Vasconcelos, da FAB, era então responsável pela operação no Brasil e foi apanhado de surpresa pelo acidente que ocorreu num sábado. Tentou o mais rapidamente possível encontrar um novo C-54 e respectiva tripulação para voar até Portugal e acondicionar carga e passageiros.
A Força Aérea Portuguesa, antecipou-se, e colocou à disposição um outro C-54 que se encontrou a meio caminho – na Ilha do Sal – com o avião enviado do Brasil. Deste modo foi possível não atrasar as cerimónias de homenagem aos mortos no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, onde foi construído um monumento para acolher os corpos de todos os militares da Força Expedicionária Brasileira (FEB). O Major Brigadeiro José R. Meira de Vasconcelos, também ele um veterano da II Guerra Mundial onde pilotou caças, ainda hoje considera que existe uma grande dívida por parte da FAB para com a congénere portuguesa.

quinta-feira, 14 de março de 2013

HISTÓRIAS VIVIDAS - A MISSÃO QUE NÃO CUMPRI...!


A Missão que não cumpri...!
A todos os mecânicos especialistas que em África serviram voando ALIII !

Poucos mecânicos de voo foram reconhecidos publicamente pelo seu espírito de missão, sacrifício e coragem demonstrados em combate!
Esta singela homenagem que lhes presto, na pessoa do meu mecânico de vôo, pretende colmatar essa lacuna na parte que a mim diz respeito.
De facto o protagonista deste episódio representa bem tudo o que essa classe de especialistas tinha e mostrou de bom!
Formiga

Por  terras  do  Fim  do  Mundo
1968! Gago Coutinho (actual Lumbala N`guimbo) era a sede do Batalhão de Caçadores 19..!
A “Batalhoa” como as tripulações da Força Aérea ali destacadas o apelidávamos pelo seu fraco desempenho em operações!
Era também sede um dos dois destacamentos aéreos (DC ”G”) no Leste de Angola. Os meios aéreos atribuídos permanentemente, eram, um helicóptero ALIII da Base Aérea 9 (Luanda), dois T-6 Harvard e um Dornier DO-27 do Aeródromo Base nº4 (Henrique de Carvalho/Saurimo). As respectivas tripulações eram substituídas quinzenalmente... se não houvessem surpresas!
O Renato e o Estima eram dois dos pilotos do AB4 que habitualmente ali estavam destacados e com quem me encontrava regularmente nesse destacamento compartilhando o prazer de passarmos juntos 15 dias naquele cu de Judas.
A repetição das mesmas caras na rotação dos destacamentos queria apenas dizer que éramos muito poucos e na prática eram sempre os mesmos destacados! Este facto contribuiu muito para uma sólida camaradagem que perdurou ao longo dos anos e que o tempo não consegue destruir.
Recordo com saudade a designação carinhosa de “helioto”, com que o Renato me brindava pretendendo significar piloto de helicóptero e da sua recusa brincalhona de entrar dentro do meu helicóptero ainda que estivesse no estacionamento! Esta camaradagem estendia-se igualmente aos mecânicos já que,como foi tradicional da Força Aérea, sabia-se fazer a distinção entre serviço e “conhaque”.
Gago Coutinho em 1969 - foto de Gonçalo de Carvalho

Análise  da  situação 
No período a que este episódio se reporta (1968), a actividade aérea no destacamento de Gago Coutinho não era muito intensa. Não só porque a carência de meios assim o determinava mas também porque não existiam objectivos que a justificassem. Tal situação dava para que o pessoal ali destacado pudesse acalmar dos momentos de maior tensão que se viviam no Norte de Angola!
A guerrilha não estava definitivamente instalada no Leste! Servia sim de porta de entrada aos movimentos de libertação provenientes da Zâmbia que tinham total apoio do governo de Lusaka. Era excepção à pouca actividade, o trabalho de acção psicológica da UNITA levada a cabo junto das populações pelo seu líder carismático Jonas Savimbi. Deambulava, ao longo das margens do rio Lungué-Bungo, afluente do Zambeze entre os seus apoiantes com os quais se identificava, vivendo entre eles.
As operações militares não eram muitas mas esporadicamente o Comando do Sector Leste pedia à Força Aérea missões para transporte de carga, evacuações sanitárias e eventualmente, de reconhecimento quando as informações recebidas careciam de confirmação no terreno e a sua importância o justificava.
A essa data a actividade do batalhão sediado em Gago Coutinho, resumia-se a operações de patrulhamento, de protecção a colunas militares para reabastecimento dos seus destacamentos como eram os casos de Sete, Mussuma e Muié.
Em Ninda, uns quilómetros a Sul estava destacada permanentemente uma companhia de páraquedistas.
Estes conhecimentos da ordem de batalha do Batalhão que os “aviadores” adquiriam, eram resultado da convivência forçada pela partilha da camarata (a vala comum!) para oficiais subalternos e sargentos do Batalhão.
A esse tempo a Força Aérea não tinha instalações próprias como seria de toda a conveniência para um adequado descanso das tripulações.
Na verdade o pessoal do exército não tinha necessidade de dormir cedo por não terem missões inopinadas, ao contrário das tripulações da Força Aérea, que tinham que manter um estado de prontidão mais elevado, pois a todo o momento poderiam ter que descolar para uma missão.
Acabávamos por adormecer embalados pelas conversas, pelo “cantar” do pessoal do posto de rádio, que passavam uma noite inteira a soletrar o alfabeto fonético na transmissão das mensagens e também pelo ruído do motor-gerador de electricidade. Funcionavam como soporíferos. A paragem do gerador inesperada a meio da noite provocava uma verdadeira emergência. Toda a gente acordava sobressaltada pelo “silêncio incómodo” que essa paragem provocava.
As tripulações de helicópteros e aviões ligeiros eram constituídas por gente muito jovem, marcados pela dureza da vida em constantes operações por todo o território de Angola.
A título de curiosidade recorde-se que Angola tem uma superfície de 1 milhão e 300 mil km2, ou seja 14,5 vezes maior que Portugal Continental e que no ano de 1968 a única esquadra de helicópteros em Angola chegou a um mínimo de nove pilotos (e poucos mais mecânicos de voo) sendo que três estavam nos destacamentos permanentes de Cabinda, Cazombo e Gago Coutinho.
Admitindo que poderia haver alguém de licença de férias, podemos imaginar o esforço que era pedido aos restantes.
Sujeitos a perigos e incomodidades constantes, estavam endurecidos pela vida, mas como qualquer mortal, também tinham um coração que palpitava e que em determinadas situações se deixava tocar pela emoção!
Capazes da maior violência quando se tratava de garantir a sua sobrevivência, tinham também momentos de desespero e raiva por não conseguirem minorar a dor de quem sofria.
Foi o que nessa missão aconteceu. Mas deixemo-nos de amolecimentos e vamos aos factos da nossa pequena história!

A  Missão
O Comando Militar do Sector Leste solicitou através do Batalhão de Gago Coutinho um reconhecimento armado para  “localizar e/ou destruir se possível, um grupo de guerrilheiros armados infiltrados em território nacional, vindos da Zâmbia, ao longo do rio Mussuma….”
E como missão secundária o pedido prosseguia:
Caso não seja localizado grupo In, capturar na área, elemento da população que eventualmente possa fornecer informações sobre o referido grupo.
O episódio simples e operacionalmente insignificante que a seguir se descreve passou-se no leste de Angola, a meio da tarde, junto da fronteira com a Zâmbia, entre as localidades de Gago Coutinho e Mussuma, na execução do pedido de reconhecimento atrás referido pelo Comando Militar do Sector Leste (Luso).
O pedido era resultado do trabalho da rede de informadores indígenas ao serviço da DGS. Era garantidamente seguro!
A acção teria que ser efectuado em helicóptero armado, por força dos requisitos expressos no pedido. Mas neste caso era uma figura de retórica, já que as únicas armas a bordo eram a espingarda G3 do mecânico e a pistola Walter do piloto.
A típica savana do Leste de Angola abaixo do caminho-de-ferro, que cruza Angola desde o mar até à Zâmbia, é um extenso planalto de mata pouco densa, ou coberta de capim alto. É atravessada por uma rede extensa de rios muitos dos quais afluentes e subafluentes do Zambeze, Lungué Bungo, Cuito-Cuanaval e Cuando-Cubango.
Tinham como característica comum, leitos relativamente estreitos e sinuosos descrevendo “ésses” preguiçosos e sucessivos como que pretendessem retardar a chegada ao seu destino. Nas margens larguíssimas podia-se encontrar toda a espécie de fauna.
Iniciado o voo de reconhecimento, aquela vasta zona plana junto à fronteira tinha muito pouco arvoredo. De onde em onde tufos densos de arvores de grande porte, quais pequenas ilhotas no meio de um mar de capim! Nessas “ilhotas”, muito separadas umas das outras o arvoredo denso não deixava ver nada abaixo das suas copas, obrigando a que a missão de reconhecimento de que estávamos incumbidos, estivesse a ser efectuada com extremo cuidado, “saltando” de uma para a outra, contornando-a à procura de inevitáveis vestígios da presença humana (trilhos deixados pela sua passagem no capim).

O  Meu  Mecânico  de  Vôo
Quando em operações, o MMA era também electricista, mecânico de rádio ou atirador, e o desta missão era bem conhecido pela frieza com que encarava as missões de fogo.
Disparava à ordem ou pedia autorização para o fazer para que tudo fosse muito coordenado; e a sua precisão de atirador era impressionante. Era o resultado da já longa comissão de serviço e do muito tempo em acção.
Imperturbável, dava a confiança necessária a quem, pilotando um AL-III numa missão de fogo, apenas podia operar a “máquina”. A equipa que tinha que estar muito bem “oleada”!
O voo decorria algo monótono, já que o terreno era muito aberto, com excepção dos já referidos tufos de arvoredo que poderiam constituir um excelente local de refúgio, para um pequeno grupo armado que por ali se encontrasse e não quisesse manifestar-se.
De repente quebrou-se o silêncio e em simultâneo “saiu” pela interfonia: 
-  Fumo “às 11 horas”!
-  Fumo à frente, diz o mecânico!
Usa-se, para mostrar a outrem sem perda de tempo a direcção de algo que se queira indicar, o sistema do mostrador do relógio. Para isso, imaginando-nos no seu centro e convencionamos que a direcção do voo é direcção das 12 horas. Informamos então quem necessita saber, que esse algo que se avistou, está às 9 horas (de lado, à nossa esquerda), às 11 h (ainda à esquerda mas num sector frontal) às 2 h (à frente e direita) ou às 4 h, (à direita mas já ligeiramente para trás).
A cerca de duas milhas vimos começar a sair da copa das árvores de um desses tufos uma pequena coluna de fumo, não muito denso, resultante sem dúvida do apagar repentino de uma fogueira. Era indubitável que havia ali alguém que ouviu o helicóptero mas que não estava interessado em se deixar localizar. Mas cometeu um erro. Ao apagar a fogueira provocou mais fumo do que se a tivesse mantido acesa. Poderia acontecer até que nos tivesse passado despercebida.
Recentemente (2002) em conversa com um ex-combatente moçambicano foi-me dito que das muitas dificuldades que um guerrilheiro tinha que enfrentar no terreno, uma das maiores era o problema da confecção da alimentação. O fumo de dia e o brilho das chamas à noite eram a grande preocupação, para não serem localizados pela Força Aérea.
Confesso que nunca tinha pensado no assunto sob este ponto de vista.
Voámos em direcção ao fumo e no capim ligeiramente amassado, (muda de tonalidade) distinguia-se um trilho pouco marcado que levava em direcção ao arvoredo, o que significava que se tratava de não mais que uma ou duas pessoas, que não habitava ali em permanência e tinha sido o resultado de recente acesso ao local.
Era assim pouco provável que se tratasse do grupo, mas tendo em consideração a credibilidade da informação, a aproximação aquele local passava a ser perigosa pelo que tinha que se revestir de toda a a precaução. Isto porque no reconhecimento visual em zonas arborizadas, a vantagem pertence a quem está no solo, já que pode ver sem ser visto e um simples tiro de arma ligeira pode abater o helicóptero.
Quem quer que ali estivesse, já nos tinha ouvido e estava de sobreaviso. Havia que não ser apanhado de surpresa pelo fogo adversário. Decidi por isso passar em velocidade, fazendo fogo para o local. Numa segunda passagem, se não tivesse havido reacção, passaria em vôo lento para tentar ver por baixo da copa das árvores.
E foi assim que, depois de algumas rajadas de G-3, regressando à vertical avistámos alguém saindo a rastejar da mata e evidentemente ferido. Pela vestimenta era uma mulher. 
Sem qualquer palavra entre nós, e sem pensar em consequências, decidi aterrar. Fiz estacionário o mais perto possível dela e aterrei “apalpando” o terreno por baixo do capim. De pronto o mecânico saltou, desarmado, e correu ao seu encontro. Senti uma vibração no rotor de cauda e depreendi que estava a cortar capim. Sorte! Nem sequer pensei no acidente que poderia ter ocorrido na precipitação da aproximação, mas felizmente não havia qualquer obstáculo escondido.
Regressou com uma jovem mulher ao colo, ferida, pernas bamboleantes agarrando um filho de meses contra o peito.
A imagem ainda hoje me choca. Com tristeza e desânimo a invadir-me um nó na garganta decidi “abortar”aquela missão.
Merda de missão! Não estava preparado para esta situação !
Olhei para trás antes de descolar para me certificar do que se passava. Porta traseira aberta, uma perna de fora, o mecânico sentava-se no estrado do heli cobrindo-lhe as pernas com a própria “capulana”, ( pano com que as mulheres africanas se cobrem e lhes serve simultaneamente de blusa e saia ).
Usam normalmente uma segunda, com que amarram o filho às costas enquanto trabalham ou caminham. 
A sua posição não era segura mas compreendi que estava a tentar proporcionar-lhe o conforto possível na ocasião: o seu abraço seguro e sentando-a entre as suas pernas!
Os ferimentos da mulher eram graves, a avaliar pela mancha de sangue na sua “capulana” que lhe envolvia as pernas, deixando-a com um tronco desnudado.
Quando a encarei, muito jovem, o seu rosto não deixava transparecer o mais leve esgar de dor como seria espectável.
Estava calma a contrastar com a impaciência manifestada por nós ambos.
Segurava contra o peito desnudado o filho com uns olhos negros, redondos, voltados para mim e que me transportaram dali para Luanda e para a minha filha da mesma idade.
Se alguma dúvida pudesse subsistir em mim quanto à continuidade da missão, aquele olhar dissipou-a de imediato. 
Decidi regressar. Aquela cena perturbava-me.
Sentia dificuldade em controlar as emoções! Inspirava rápida e repetidamente tentando evitar exteriorizar perante o meu mecânico algo que não gostaria de transmitir.
Puta de vida !
Fiz-lhe sinal de polegar erguido. Respondeu de igual modo. Estava pronto! Descolei rumo directo a Gago Coutinho!
E vociferando palavrões que só eu ouvia ia dando palmadas na coxa esquerda, sintoma de que algo não me corria bem! Pensava em muita coisa e também na elaboração do relatório da missão, onde não podia constar esta cena. Era necessário fazer algo por estes dois seres. Alguma coisa havia de me ocorrer.
Por gestos, pois continuava com a ficha do capacete de vôo desligada, o mecânico pedia para que apressasse o regresso apontando-me para as pernas feridas da mulher e fazendo-me entender que era preciso, após chegada a Gago Coutinho, proceder a uma evacuação para o Luso. 
Aí estava a solução para a minha preocupação !
Evacuar aquela mulher era poupá-la a um interrogatório logo na aterragem.
Porém era o entardecer e em breve seria noite. Iria ser difícil convencer o piloto do DO-27 a fazer a evacuação! As evacuações nocturnas não eram permitidas no tipo de aeronaves disponíveis no destacamento, se bem que no Leste fosse tecnicamente fazível. Não havia obstáculos significativos e a identificação das poucas localidades com iluminação era fácil. Em último caso seria uma decisão que só o piloto poderia tomar mas sempre sujeito a eventual sanção disciplinar, se bem que pouco provável.
Para dificultar as coisas, não tinha comunicações com o destacamento – Gago Coutinho não dispunha de facilidades aeronáuticas para além da pista – que me permitissem pedir alguma antecipação na preparação da missão. Em vão chamei pelo Renato e o Estima, para a eventualidade de se encontrarem a voar! Mas não estavam!
Tinha que esperar pela minha aterragem! Por outro lado talvez fosse melhor assim pois não provocaria a curiosidade do pessoal da unidade!
Iríamos ver que rumo as coisas tomariam após a aterragem. Era mais uma missão que chegava, facto que não constituiria novidade no Batalhão.
Esperariam que eu chegasse à sala de operações para elaborar o meu relatório e o mecânico trataria do resto. Não tinha qualquer dúvida de que se iria passar assim.
Pelo caminho constatei o cuidado com que mecânico tratava aquela jovem que minutos antes tinha ferido tão gravemente.
Da parte dela apenas um olhar sereno de quem não compreendia o que lhe estava a acontecer.
Imaginei para ela, o diálogo que ela estaria a travar consigo própria. 
"Afinal ela não estava ali porque o “mais velho” lhe tinha determinado cozinhar para uns quantos camaradas que haviam de passar por ali naquela hora das vinte ?
E que culpa tinha o seu filho das “macas” dos homens. Foi pena ter deixado as “inbambas” (objectos pessoais) lá no mato. Talvez as recuperasse quando voltasse, mas não imaginava bem quando seria! “
Ai estava eu de novo a fazer romance!
A aproximação à pista fez-me deixar para trás estes pensamentos que me incomodavam! Era sinal de consciência pouco tranquila. Iria tomar banho. Talvez lavasse!
Aterrados e parqueados,... ninguém por ali como tinha previsto! Tanto melhor!
O mecânico ao contrário do que era norma desapareceu deixando-nos aos três dentro do heli.
Por sua vez pus-me a preencher o livro do helicóptero (coisa que raramente fazia deixando essa tarefa para o mecânico de vôo), enquanto aguardava o desenrolar dos acontecimentos. Podia acontecer que o mecânico precisasse de mim ali por perto!
Tomou a iniciativa de ir convencer o piloto do DO 27 a efectuar a evacuação, o que a acontecer, iria ser feita de noite.
Não assisti, mas soube mais tarde que houve alguma tensão entre os dois, para que a missão se fizesse. Não sei que argumentos usou, mas foram eficazes.
A evacuação foi feita!
Regressaram aos primeiros alvores do dia seguinte e aterraram numa aproximação directa à pista para não dar azo a perguntas.
E quando o encontrei, já barbeado e em fato de voo camuflado, exibia um ar sério e grave, transmitindo a satisfação de dever cumprido! Tenho a certeza que não tinha dormido!
Cumprimentei-o com o tradicional bom dia ”Luena”.
- “Môio”!
-  Môio óbi! Foi a resposta. E prossegui:
-  Com que então o Sr. C-----. esta noite foi “p`rás gajas”!
Nenhum de nós queria falar do acontecido e esta abordagem servia às mil maravilhas para o efeito!
Falava-se sem dizer muito! Dava para nos entendermos.
- Lá teve que ser Sr. Alferes!....
E perfilando-se num rigoroso “sentido” acrescentou: - Mas “pronto para operações”!
Ele sabia que com esta minha observação, não referindo directamente o assunto, lhe estava a transmitir a minha concordância para a sua atitude de querer acompanhar a evacuação.
Mas sabia mais ! Sabia que lhe estava a dar um louvor pessoal, pois esse é que era importante para ambos.
Também não precisava de lhe perguntar como estava a mulher! 
Isso seria trazer à memória algo que não queríamos lembrar. Sabíamos porém, que ficara o melhor possível, a partir do momento que ficou entregue aos cuidados do incansável pessoal médico e paramédico dos nossos hospitais de campanha!
O mesmo já não poderia garantir se ela tivesse ficado em Gago Coutinho onde iria ser submetida a um interrogatório e onde não teria os mesmos cuidados médicos que no Luso. 
Daí a pressa em fazê-la sair dali. Nunca soubemos o que foi o futuro daquela mãe e filho. Tínhamos tentado compensar um mal que não quiséramos fazer e com o qual não contáramos.
Fui à procura de guerrilheiros armados e saiu-me do nada, o que a natureza humana tem de mais sensível e belo: uma jovem mãe e o seu filho!
Estas eram as contradições que se viviam num conflito no qual, onde a par da violência desencadeada a cada momento, surgia também uma faceta na qual tudo se tentava para minimizar a dor de quem sofria.
E que bem se comportou este guerreiro, habitualmente frio, que era o meu mecânico.
Na FA a prontidão das tripulações foi sempre grande, mas nas evacuações sanitárias era ponto de honra! A disponibilidade era total! Tudo se interrompia para dar lugar à execução da missão!
Face a um pedido de evacuação de feridos em combate a refeição era de imediato posta de lado!
O raciocínio de cada um dos envolvidos na missão era o lógico: Aprontar o que lhe competia porque os outros já estavam a fazer a sua parte!
Pilotos, mecânicos, médicos, enfermeiros, controladores e demais pessoal envolvido no apoio à missão tinham este procedimento!
Todos sentimos um enorme orgulho de ter feito parte dessa geração!
Deste episódio e em jeito de conclusão;
Para os arquivos da guerra, esta missão de reconhecimento foi de facto efectuada…
No relatório de missão ficou registado:
Efectuado reconhecimento na área determinada.
Não foi detectado qualquer grupo, ou vestígios da sua passagem!
E era verdade!
O oficial de operações do Batalhão não perguntou nada! 
E eu, apenas tinha “esquecido” aquela parte da missão atribuída, que rezava:
“… captura na área, de elemento que possa fornecer informações sobre o referido grupo”. 
Porque estava convicto que aquela mulher e o seu filho nada sabiam de relevante que pudesse interessar para a conduta da guerra! 

24 de Abril de 2010

"Formiga" - Major-general Queiroga, Piloto de helicópteros, Angola (1967-1970)

PS.
Este mecânico MMA, tinha um apelido pouco vulgar e glosava sempre que o seu nome vinha a terreiro. E se lhe perguntavam o nome dizia de forma pomposa que era......sim, mas o único autorizado na Força Aérea .




quinta-feira, 7 de março de 2013

OS VOOS DE EXPERIÊNCIA

Cordeiro, dando saída a mais um voo de experiência
Esta era também a ocasião de dar a oportunidade à rapaziada de dar uma volta nas nossas maquinetas. Não consigo recordar-me quem estava comigo neste voo.
Entretanto, lembro-me, que um dia precisamente num voo de experiência à vertical de Gago Coutinho, começo a notar uma névoa e um cheiro estranho dentro do habitáculo. Tudo apontava para um qualquer foco de incêndio. 
Alertei o controle e fiz-me à pista. Pela interfonia, dei instruções ao jovem que estava comigo, recomendando-lhe, que seguisse rigorosamente as minhas instruções, que não havia qualquer problema. Quando estava com todas as certezas de chegar à pista fiz os procedimentos normais, desliguei o motor, mantendo-o sempre informado de tudo para não entrar em pânico. Na altura do toque desliguei os últimos contactos, e mal o avião se imobilizou dei indicações para ele sair. 
Como não obtive resposta e vejo ao lado o Tomaz, que entretanto tinha chegado de motorizada com um extintor (grandes meios de socorro!!!), a rir-se como um perdido é que percebi. O meu passageiro, tinha-se atirado para o chão ainda antes do avião parar. Não levou com o estabilizador de profundidade, porque felizmente mandou um grande tombo!
Quanto ao incêndio não passou de um falso alarme.
Talvez nunca tenha sucedido a ninguém, mas tratou-se de uma fuga hidráulica! É verdade, andamos às voltas e descobrimos que um furo do tamanho de um bico de um alfinete, era suficiente para pulverizar o óleo como fumo, dando-lhe o aspecto de uma neblina. Confundi o cheiro do óleo pulverizado com o de qualquer hipotética combustão.
Nabice ou inexperiência? Não sei !
Se estivesse longe de qualquer pista, seguramente que o meu comportamento teria sido diferente. Ali, com todos os recursos ao meu alcance, não valia a pena estar a tomar outras atitudes.